Do plural à impluralidade

Nós, el-rei, faço saber que sempre quando leio algo supostamente reflexivo, subjetivo, eu pergunto: e este “nós” do texto? Nós isto, nós aquilo, nós para todo lado. Comprovamos, percebemos, reprovamos, ou: “se for para colaborar com a equipe, nós estamos disposto - no singular, sim! - a tudo, mas eu prefiro a zaga”. Alguém me responde ao fundo: “é plural majestático”, uma estratégia do orador fundir-se em simpatia com seus ouvintes. Para mim soa desagradavelmente pedante: “sermos mulher do rei nos abre muitas portas”.

Mas nós, el-rei, faço saber que o irritante é justamente esta pretensão de se tornar o texto modestamente soberano, só pela desculpa de diminuir a distância entre o rei e o povo, ou apenas para se eximir da responsabilidade do que se escreve quando se brinca de esconder atrás de um plural genérico.

Mas nós, el-rei faço saber que aos céus me reporto, porque como se sabe, no princípio não era o verbo, mas o plural majestático de vosso Deus, vossa Santidade, vossa Autoridade, vossa Senhoria que escreve, e eu, plebéia, quando a vós leio, amém!

Mas nós, el-rei, faço saber que deste cunho me privo e me questiono: há democracia na escrita, ou no retrato da verdade quando esta se encontra direcionada do sabe-tudo (aquele que escreve) para o sabe-nada (aquele que lê)?

E faço saber que, sendo o plural majestático próprio dos reis, imperadores e papas, oradores e políticos dele se aproveitam, para que possam imperar, em supremacia, e para que possam anular o pensamento crítico de um povo. Democracia? Também faço saber que se trata de um plural deselegante, principalmente em textos que se pretendem formadores de opiniões, ao trazerem uma prece marcada por uma entonação de súplica como desculpa para escapar do erro. Senso crítico?

Mas nós, el-rei, faço saber que com o decorrer do tempo este formalismo arcaico assumiu um caráter de algo pomposo e distante. Arrogante mesmo, usar o plural majestático para falar de si mesmo. Faço saber que na idade média até podia surtir em algum efeito, mas hoje não. Hoje faço saber que é muita pretensão utilizar-se de um produto unipessoal para que se possa parecer muitos. Trata-se de uma apelação discursiva ao parecer que o escrevente vira-se, assim que pode, para a pequena história onde se julga mestre. Usa o plural majestático para picar o leitor enquanto fala de sua obra como a última elegante, aquela politicamente correta. No entanto, nós, el-rei, faço saber que, deste modo, textos e letras trazem a sensação de que o escrito não “cola”, pois trazem uma manipulação evidente. Quer dizer: o plural majestático pode até ser interessante, mas, caso não se importe, cada um fala por si, está bem?

Mas nós, el-rei, faço saber que o uso do plural majestático cabe perfeitamente no grau de liberdade de expressão que se atribui a qualquer cidadão e também me permito dizer que esta técnica de se esconder atrás do plural resulta, mas torna-se demasiado óbvia. Faço saber, inclusive, que se trata de um plural que faz sentido apenas às mulheres que estão grávidas, onde o “nós” é o topo de um mundo entre elas e seus rebentos. É que, para elas, a monumentalidade do egoísmo do plural majestático não se confunde com a solidariedade da comunhão com outros. É o que nós, el-rei, faço saber!

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Está escrito no Manual de Redação do Jornal a Folha de São Paulo:
Plural Majestático - uso da primeira pessoal do plural para designar ação ou pensamento realizado por indivíduo ou organização. Não use na Folha.

Leia mais sobre plurais em "Tipo Assim", de Kledir Ramil.