Curso Fantasma

Tem professor dedicado que faz apostilas. Cada curso uma apostila. E depois arquiva no seu escritório, paredes forradas com estantes, livros e papéis. Tudo devidamente organizado, etiquetado. Trabalho de alunos em caixas, divididos por turma. Arquivos mortos, arquivos vivos, e arquivos para serem ressucitados um dia. Tem professor que é assim, dedicado. Nasceu para ser professor. Mas até este professor, pra lá de idealista, às vezes não se conforma. Não se conforma mas se vê obrigado a encarar algumas coisas nada bacanas.

Nesta semana foi a vez de encarar um curso fantasma, na cidade onde tudo pode ser fantasma, inclusive funcionários. Naquela coisa do "Quem Indica", sobrou para uma amiga minha dar aulas na pós-graduação. Aquilo de sempre: nunca é exatamente a matéria que a gente compreende, mas que os professores encaram por necessidade, para enriquecer o curriculo e sobreviver neste mar de gente esbanjando seus títulos de doutor disso, doutor daquilo. E já que não aceitar um convite num caso desses é matar a tal da rede de contatos, o networking, lá vai professor estudar de última hora o que vai dar no dia seguinte. É assim porque, evidentemente, este tipo de oportunidade aparece pra ontem e pega todo mundo de surpresa. Professor que é bom disfarça e aluno nem se dá conta. Eu mesma cansei de estudar no carro, a caminho da faculdade, no único tempo de sobra. E também é por isso que pedi demissão. Tem hora que a gente não aguenta dar tantas disciplinas que a gente não gosta e fez questão de esquecer nos tempos idos.

Mesmo com tudo isso minha amiga resolve encarar esta aula na pós graduação. Corre na casa de um amigo e pede material sobre o tema. Cinco livros para ler e compreender em dois dias. A apostila por fazer, filha pequena para cuidar, namorado e uma amiga passando a semana na casa dela, além dos afazeres cotidianos. Dois dias sem dormir e lá vai ela viajar 40km para ganhar pouco, muito pouco. Ela pensou em desistir, por conta da grana, que quase não pagaria a gasolina. Então um outro amigo lembrou a ela que seria bom para o currículo. E nesta, de currículo lattes, lá vai ela buscar um argumento e melhorar um pouco o valor da hora aula. Consegue, mas continua pouco, muito pouco. Em se tratando de um curso fantasma, uma merreca. E lembrar que a coordenadora pediu para que ela não colocasse o nome da empresa em lugar algum, não divulgasse no material que ela andava preparando, deixava tudo entranho, muito estranho!

Tão estranho que, chegando em casa, ela foi pesquisar. Bendita a internet com informações de tudo quanto é tipo. A surpresa veio de xofre, pedindo licença. E quando minha amiga se dá conta, são as contas que estão erradas. Diz o MEC que um curso de especialização deve ter 360 horas-aula em sala de aula, não contadas as horas para a monografia de final de curso, também obrigatória. Minha amiga fora contratada para dar um disciplina toda. Já tinha voltado para casa achando ridiculo uma disciplina toda, em termos de pós-graduação durar apenas 4 (quatro) horas. É ridiculo mesmo, além de parecer suspeito. Mas então o que é suspeito passa a fazer um sentido sem sentido quando a grade horária lhe salta aos olhos na tela do computador. Está lá, bem escritinho para o MEC ler, 40 (quarenta) horas. Em vez de quatro, quarenta. Ela me diz incrédula: "amiga, tudo multiplicado por dez! Tudo aleatório". Eu concluo: "um curso fantasma".

Um receptáculo de dinheiro. Uma compra de certificado, e não de conhecimento. E lá se vai mais de cinco anos de sucesso. A empresa aumentando o número de alunos, ano após ano. A empresa diminuindo o salário dos professores (minha amiga vai receber 50% a menos que o professor que lhe passou a disciplina, motivo do abandono). E depois querem que eu ache que o ensino superior está indo bem, muito bem. Querem que eu diga mais das alegrias e que eu eu dê menos porrada no sistema. Fala sério, quem consegue? Quem consegue calar a boca numa hora como essas? Dizer todas aquelas coisas bonitas entre alunos e professores é saudosismo. Eu tenho disso também, só acho que as coisas deveriam mudar. Afinal, não é por isso que nós, professores, acreditamos no amanhã e buscamos (ou buscávamos - para aqueles que desistiram) a diferença? Que vontade de denunciar o curso fantasma às autoridades, mas e minha amiga, vai trabalhar onde?