Trabalho, Amor e Diversão

Trabalho, Amor e Diversão
Por Fernanda Ramirez


Só um ano depois eu entendi que aquela frase poderia me ter sido um tapa na cara:
- Professora, a senhora se diverte mais que a gente!

Na época eu não dei por conta, mas era uma crítica capital. E das grandes. Daquelas que chegam de mansinho e se instalam bem no meio do nosso peito, onde se grudam, e se grudam, e se grudam, e cuja mais-valia esbarra-se no não ser. Eu era. Sempre fui uma qualquer coisa que sorri. Uma qualquer coisa que sente prazer. Uma qualquer coisa viva que exige da vida a vida.

Anos antes, e porque eu sorri demais, me deram as contas. Embraveci. Então eu briguei, questionei, berrei e lutei por ser quem eu era: uma professora, e das boas. O chefe do campus (não o do curso), que tinha enviado meu nome para a reitoria com o doce propósito de se esbanjar no alto do seu poder para me demitir, voltou atrás com a ressalva de que eu, naquele campus (e só naquele em que ele era chefe), não poria mais meus pés, finalizando sua fala com um tiro certeiro: quem ela pensa que é?

Uma qualquer coisa que sorri quando chega na sala dos professores e, contrariando o mundo amargo do trabalho, diz bom dia. Uma qualquer coisa que sente prazer e, contrariando a ordem natural do trabalho, se diverte mais que alunos desesperados em busca de um diploma e aumento nos seus salários de operadores de telemarketing, onde seguirão carreira, algo bem comum em se tratando de universidade particular. Uma qualquer coisa viva que exige da vida a vida traçada pelas próprias mãos.

Só muito tempo depois eu entendi que aquela frase poderia me ter sido um tapa na cara:
- Professora, além de dar aulas, a senhora também trabalha?

E porque eu sempre fiz arte da docência e da docência, arte, o tom da censura, que me dou conta apenas agora, chega ao apelo da surdina: “arte? Ora pois, minha querida, o trabalho gera é sofrimento. Entende? E na roleta-russa da nova ordem capital das coisas, todo sofrimento gera um mercado. De empregos, de diplomas, de eu finjo que ensino enquanto você finge que aprende”.

A censura que no passado não vi, hoje me desvela uma verdade que me incomoda há muito tempo. Que a diversão não é dada ao trabalho. Alguém, um dia, profetizou esta combinação de impossível, e a regra se fez: trabalho é trabalho, lazer é lazer. E no fio que aí se tece, não pode a professora rir mais que o aluno, ou ela ter mais prazer que diretor, porque ambiente de trabalho é ambiente árduo, com tarefas pesadas e desgostosas, onde a alegria não põe banca. Tem só um tal de bater o ponto, seguir ordens, dar ordens, cumprir metas e um filetinho de cartilagem para facilitar a respiração apenas por um segundo, e dentro do banheiro, quando não tem ninguém olhando.

Na fila dos desempregados, qualquer primeiro emprego serve. Isso me parece bizarro, não parece para você? E chora-se de alívio por uma vaga de ascensorista, de gari ou qualquer coisa destinada à sobrevida. Parece mesmo é que a sociedade está mal organizada porque bem diz um amigo meu, que está prestando prova para ser diplomata (e será), este tipo de trabalho deveria ser feito por esta gente que anda por estes presídios, e de justa causa. Ele continua: “matou? Vai limpar bosta nos esgotos, durante a madrugada, e levar descarga na cara”. Taí, a idéia é boa e eu to assinando embaixo.

Mas no fim das contas, a coisa me vem na veia:
- Você sorri demais, quem é que vai levar você a sério?

E quando a frase vem do amigo mais amigo que a gente tem, é de bom tom parar um pouco pra pensar. No susto, a constatação de que uma vida alegre não é séria. Respeito? Meu amigo tem dúvidas, os alunos questionam e os homens me avaliam pela minha juventude com uma navalha na minha carne quando me dizem “eu não tenho mais trinta anos” (e logo em seguida saem desfilando mulheres ainda mais jovens e mais menininhas – acho que é pra juntar com o menininho que muitos deles são). E se no mundo do trabalho não se pode mais sorrir, no mundo do amor a diversão pode ser sinal de falta de compromisso. “Por isso os homens não te levam à serio, minha querida!” Mas que explicação mais chinfrim esta, viu.

Foi só muitos meses depois eu me dei conta de que aquela frase poderia me ter sido um tapa na cara:
- Você se diverte com isso, não é?

Isso era eu e ele. Eu tinha achado mesmo muito bizarro a tietagem das outras mulheres. Então fiz o fato virar crônica, virar humor, virar vida. Achei graça dele. Sorri. Eu queria dizer que eu ria do prazer da vida, da alegria daquele dia, da sensação boa da amizade que entre nós ameaçava existir, da felicidade que me levou até ele. Eu queria dizer que eu rio à beça quando faço sexo e que quando eu tenho um orgasmo eu rio por dentro. E que isso poderia ter sido eu e ele.

Eu ainda queria dizer que eu rio de novo só de lembrar. Que eu me divirto. Que eu sou assim, um riso sincero, verdadeiro e pau-pra-toda-obra. Que sou muito mal-humorada quando não estou rindo, que minha cara fica feia e parece um buldogue abandonado. E por parecer um buldogue abandonado eu rio da minha cara e do meu mal-humor. E que eu me divirto da minha incoerência, das minhas dúvidas, do meu desejo. Que eu rio porque eu levo a vida muito a sério e não há melhor maneira de amar, nem de trabalhar, que não seja rindo.

Desse jeito, quando eu voltasse pra nossa casa depois de um dia, eu não precisaria soltar aquela: em casa não se discute trabalho.