A crônica acadêmica

Para minha amiga Solange, diretamente da aula dela na universidade.

Local: laboratório de informática.
Aula: Jornalismo de Revista.
No quadro: Diferença entre a crônica e o artigo de opinião.



A fotografia.

Atrás do monitor, uma donzela.

Talvez não nos termos de séculos atrás, de virgindade, pureza e coisa e tal. E, no auge dos seus vinte e poucos anos, ela saca da bolsa- enquanto a professora diz que artigo de opinião é um texto que defende uma idéia - seu kit de beleza, espelhinho, base, pincel, blush e pó.

Depois de uma análise criteriosa na porosidade aparente, ela ainda nem percebeu que o assunto mudou do artigo para a crônica, um algo escrito que permeia uma visão de mundo através de dados factuais. E ela era o fato, o tema cotidiano, a ironia e, muito provavelmente a vergonha alheia. A minha vergonha.

De olho no espelho, passou a base com o dedo como se preparasse o rosto para a maquiagem. Preparou. Em seguida pegou o lápis, passou ao redor dos olhos, para dar cor à tela ainda embranquecida. Um rosa nas bochechas. Um tempo para os retoques. E o batom só pulou da necessaire quando a aula dizia do escrever.

Assuntos interessantes para os futuros jornalistas. Aquela coisa de laboratório mesmo, de prática, a vida na lida e no lide: como fazer um perfil, como fazer uma entrevista, onde se pode ou não pode usar adjetivos no texto jornalístico. Mas ela ali, ausente disso tudo, levantou os lábios narcísios, piscou suas pestanas tingidas de preto, analisou o rosto de um lado e de outro e imagem e tal.

Por certo que a professora até se sentiria lisongeada se toda essa dedicação tivesse sido em prol da prática do jornalismo em revista, cujos detalhes em tons, cores, coisas, pestanas etc e tal sobre a pele se tornasse literatura. E em pauta caísse como uma luva o jornalismo literário. Mas ela ali, ausente de tudo, nenhuma atenção para como se constrói uma linha de tempo, a importância da narração dos fatos para os meios jornalísticos e blá blá blá.

Coisa e tal ela tira da mesma necessaire de couro preto um fio dental. Seu olhar se volta novamente para o espelhinho, lábios esticados de modo a mostrar tanto os dentes de cima, quanto os de baixo, de modo a poder contar os 32, exceção feita ao siso. Corta um pedaço do fio e com movimentos ritmados para frente e para trás, um dente ao lado do outro, algumas babas caem sobre o monitor, tela em descanso, "professora, é muito difícil".

De volta à diferença entre os artigos de opinião e a crônica, o primeiro com argumentos abstratos, o outro mais preso ao cenário, a aluna verifica, confere o rosto, tudo em ordem, ajeita os cachos dos cabelos. Um depois do outro e na conferida final, e nos finalmentes, e no último minuto do segundo tempo faz funcionar o computador para ver as novidades do dia. Hotmail.

Do lado de lá, propõe-se um exercício de escrita. Curso de jornalismo. Brasília. Arruda? Então ela, inocente no tema, balança a cabeça, não sabe direito o que está acontecendo. Nega. Diz não. Começa o exercício, ela se levanta, arruma a blusinha, verifica a calça jeans, dá uma última olhada no espelhinho, verifica o bico do sapato do tipo chinelas havainas e pede para ir ao banheiro. Vai e não volta.

(...) E no retrato do Ensino Superior Brasileiro, em que alunos não ambicionam nada além de continuar nos seus centros de telemarketing e desfilando suas roupinhas de grifes, resta, como na maioria das vezes, as imitações (...)

Isso me lembra outra vez, em que uma colega dava uma aula empolgadíssima, quando uma das alunas levanta a mão. A professora toda contente com o interesse:

"Sim, sim, em que posso ajudar?"

Mas a resposta veio como um tiro certeiro:

"Professora, onde você comprou seu tênis?"

Bléim, bléim, bléim. Os sinos tocam. A aluna imaculada em jornalismo de revista volta para a sala de aula. Parece que não vai ser hoje que ela vai tirar o cabaço, no bom português. Sobre a mesa uma lixa de unhas, um vidrinho de esmalte cintilante, acetona e um palitinho com algodão.